Um diálogo-entrevista com José Allamano

Lisandro Rivas, missionário da Consolata e atual Bispo auxiliar da Arquidiocese de Caracas, Venezuela, imaginou-se um dia a ter um diálogo tu a tu com José Allamano. Isso aconteceu por ocasião do Ano Sacerdotal, mas o texto que agora partilhamos com os nossos leitores mantém toda a atualidade. Está bem próxima a Canonização de Allamano (20 outubro 2024) e, por isso, recuperamos esse ‘diálogo-entrevista’ entre um missionário da Consolata e o seu Fundador, para melhor o conhecer.

 

Por Lisandro Rivas *

 

Este é um diálogo próximo e fraterno com um amigo, um homem de Deus, um ícone de consolação, um companheiro de caminho. Um homem chamado por Deus à vocação cristã e sacerdotal, mas um homem que vive com intensidade o seu ser cristão, eclesial e sacerdotal, incendiado pela missão, este homem é José Allamano, alguém que vive em plenitude a partir do ‘ordinário’ a loucura por Jesus e pelo seu Reino, de forma ‘extraordinária’.

 

José, fala-me de alguns aspetos importantes que marcaram a tua vida.

Nasci a 21 de janeiro de 1851, numa aldeia rural, a minha mãe tomava conta da casa e cuidava de nós. Apenas nascido, os meus pais levaram-me imediatamente para ser batizado. Não é que tivessem medo que eu morresse logo. Batizar as crianças no dia em que nascem era um costume muito comum naquele tempo. Agradeço aos meus pais por me terem batizado logo após o meu nascimento, pois tinham uma fé muito forte. Eramos cinco irmãos: uma rapariga e quatro rapazes. Eu era o quarto. O meu pai chamava-se José, como eu, e a minha mãe Mariana. Os meus irmãos eram: João, o mais velho, Ursula, Natale e Octavio, o mais novo da casa. Quando eu tinha três anos, o meu pai morreu. Quase não me lembro desse dia, mas lembro-me da cara da minha mãe. A pobrezinha ficou sozinha, a cuidar de nós e da quinta. Com boa vontade e confiança em Deus, fez das tripas coração. E saiu-se bem. Ajudada, claro, pelos conselhos do meu tio, o padre João, pároco de uma aldeia vizinha da nossa. A minha mãe era irmã de um padre que todos amavam e estimavam e que a Igreja declarou santo: José Cafasso. O meu pai também tinha um irmão padre, o padre João, amigo e colega de estudos do meu tio, o padre José. Digo-te, Lisandro, que São Domingos Sávio, Dom Bosco, o Cardeal Guilherme Masaia, o grande missionário da Etiópia, em África, eram meus conterrâneos.

 

Olha, José, lembras-te de alguma coisa da tua primeira comunhão e do crisma?

Bem, não me lembro da minha primeira comunhão, porque não era celebrada como é celebrada hoje pelas crianças e adolescentes, mas o que me lembro, e que marcou a minha vida aos 7 anos de idade, foi o dia do meu crisma, quando chegou um bispo de barba branca, que tinha sido missionário na Índia. Uma barba branca… Que bonito! Isso marcou-me.

 

E quando é que decidiu ser padre?

Decidi ser padre quando terminei o liceu. Recordo os dias no seminário e recordo-os com muito prazer, porque me senti muito bem, era o ambiente que eu procurava. Digo-te sinceramente, Lisandro, não foi fácil para mim dar este passo. Os meus irmãos mais velhos queriam que eu continuasse a estudar na universidade, que me tornasse um grande profissional. Mas eu não aceitei, porque percebi que não era o que eu queria e não era o que Deus me estava a pedir. Ainda me lembro do que lhes disse: “O Senhor chama-me hoje… não sei se me chamará daqui a alguns anos”. Estudei muito e preparei-me para ser um bom padre. Olha, Lisandro, no seminário insistiam em três pontos fundamentais: a oração, o estudo e a disciplina. Não há outra maneira de se tornar um bom homem e um bom padre. Foram sete anos de muita oração e reflexão para descobrir o que Deus queria de mim. Para ser padre é preciso preparar-se bem: “senão é melhor não o ser”. Não achas, Lisandro? Claro que sim, e ainda mais hoje em dia.

Digo-vos que durante todos estes anos fui sempre acompanhado pelo desejo profundo de me preparar bem e o melhor possível para a missão de padre. E digo-te mais, Lisandro, “para ser padre, não basta a boa vontade, é preciso muito mais”. Assim, para mim, os sete anos que passei no seminário foram um período difícil, mas muito positivo. Tornei-me um homem. Digo-vos que um momento difícil foi quando a minha mãe morreu. Soube da sua morte quando ela já estava enterrada há uma semana. Foi um golpe muito duro. Além disso, nunca tive uma constituição de ferro. Mas tudo bem! Consegui terminar os meus estudos. Fui ordenado sacerdote a 20 de setembro de 1873. Que alegria para os meus irmãos e irmãs, para o povo e para mim! Fiquei muito triste por a minha mãe não estar presente. Mas pudemos contar com a presença do meu tio, o padre José, a quem muito agradeço pelo caminho humano e de fé que partilhou comigo!

 

Agora, gostava que me falasses um pouco da tua humanidade e da tua santidade ao longo de toda esta caminhada, porque os teus companheiros falaram-me muito destas duas dimensões.

Lisandro, sabes, não é fácil falar destes dois aspetos em relação a nós mesmos, mas vou partilhar contigo algo da minha humanidade e da minha vocação à santidade:

Sempre o disse e mantenho-o, Lisandro: “o padre, e mais ainda o padre missionário, é um homem da caridade”. Sempre demonstrei a todos os meus sacerdotes o mais profundo respeito, porque aquele que não estima a sua dignidade nos outros não saberá estimá-la em si mesmo. Ajudei sempre os padres mais necessitados e pedi aos meus colegas que fizessem o mesmo, insistindo que, acima de tudo, devemos promover e viver a fraternidade sacerdotal. Olhando para a minha vida, descubro serenidade e harmonia. Estes dois valores da minha maturidade humana permitiram-me ser um homem acolhedor, amável e respeitador, sem invadir o mundo dos outros e sabendo fazer com que os outros respeitem o meu espaço pessoal, fazendo de mim um instrumento digno de confiança. Sempre encontrei tempo para ouvir com afeto aqueles que me procuravam e para os orientar com autoridade.

Desde muito jovem e durante os meus anos no seminário segui sempre os conselhos dos meus formadores, que nos falavam da necessidade de sermos santos. Santos de verdade, não santos de fachada, apenas para aparentar. O meu projeto de ser santo esteve sempre presente na minha vida, uma santidade vivida e procurada no dia a dia, no quotidiano. E portanto, digo-o sempre, uma santidade aqui e agora, já, hoje e depressa. Coloquei este desafio de viver a santidade no abc dos missionários e das missionárias, quando lhes digo com insistência: vocês devem ser “primeiro santos, depois missionários”. Claro que não é uma santidade vivida e sonhada nas nuvens, não, penso que me entendes, falo de uma santidade a partir da vida quotidiana, com um olho no Evangelho e outro na realidade, para captar as perguntas que os pobres fazem sem palavras, mas que se esboçam nas suas grandes necessidades quotidianas, nos seus rostos sofridos e na sua procura de Deus. Digo-te que a minha maior preocupação é tornar-me santo e santo ao mais alto grau, em grau superlativo. Porque humano, santo. Porque santo, humano.

 

José, gostaria que partilhasses comigo algo do teu ser sacerdote diocesano:

Sempre vivi o meu sacerdócio inserido na minha igreja local de Turim, totalmente imerso no trabalho do Santuário da Consolata e cuidando do bom funcionamento do Convitto Ecclesiastico (Instituto de Pastoral) para os jovens sacerdotes. Desde o seminário maior sempre mantive e aprofundei o seguinte: “que todo o sacerdote, por sua natureza, é missionário, a vocação sacerdotal e a vocação missionária não são essencialmente diferentes; a única coisa que é precisa é ter um grande amor a Deus e às almas”. Cultivei sempre em mim a oração, a celebração da liturgia, o cuidado dos espaços e alfaias liturgicas, o estudo, a reflexão, as aulas que dei no Convitto e no seminário, os exercícios que acompanhei, as conferências que preparei e partilhei com os diferentes grupos. Procurei sempre manter-me informado e atualizado nos domínios do meu ministério: pastoral, moral, comunicação, teologia, liturgia, missão, etc.

A minha espiritualidade sacerdotal foi sempre enquadrada pela Eucaristia, por Maria, especialmente sob a invocação da Consolata, pelo tempo litúrgico, pelos santos vivos e pelos já canonizados, especialmente os ligados à missão e à misericórdia, corrente herdada do meu tio José Cafasso, bem como pela leitura das suas vidas, seguindo os seus passos e propondo-os para a edificação dos outros.

Pastoralmente, sempre me ocupei do Templo-Santuário e da comunidade cristã, oferecendo informação (jornais), formação e vida sacramental, bem como acolhimento e abertura à colaboração com as missões (Mulheres Missionárias, etc.). O meu apoio e colaboração com o padre Santiago faz de mim um servidor fiel, organizado e aberto ao trabalho com outros sacerdotes, com leigos, com homens e mulheres. Esforcei-me por ser um construtor ativo e criativo da Igreja Local, mostrando-me um sacerdote de confiança para os bispos, uma vez que me confiaram o clero jovem, a orientação espiritual dos seminaristas, o acompanhamento de várias Congregações Religiosas femininas, a Casa de Retiros de Santo Inácio, as aulas de moral, o Santuário e até a Fundação das Irmãs Missionárias da Consolata (Pio X). Claro que a minha proximidade com a Hierarquia era ainda uma proximidade crítica e livre. Livre de carreirismos e cumplicidades. Houve vários momentos de confronto sincero e verdadeiro com eles.

 

Diz-me: Como viveste o teu sacerdócio missionário?

Olha, rapaz, eu sempre olhei para os missionários e para as missões com uma intensidade cada vez maior. Compreendi claramente que cada sacerdote é um missionário e que a missão é a melhor realização de toda a vocação sacerdotal. Claro que, não podendo ser missionário, isto é, não podendo ir para África, devido à minha saúde precária, decidi ajudar aqueles que têm uma vocação missionária a tempo e a destempo, e sempre lhes disse que temos de “ser missionários na cabeça, na boca e no coração”, isto é muito claro para mim, Lisandro. A missão nasce no coração, por isso tenho sempre no meu coração aquele grande desejo de que muitos partam para as missões e eu apoio-os e acompanho-os a partir deste Santuário da Consolata.

Como sacerdote missionário, senti-me como aquela alma em busca do amado, evocada por São João da Cruz. O meu olhar dirigia-se para onde eu era reitor, sabendo que uma certa tradição missionária ainda não se tinha extinguido no Santuário, de onde tinham sido enviados os primeiros missionários Oblatos da Virgem Maria. Outro elemento, Lisandro, é que, no acompanhamento do clero jovem, encontrei muitas vezes sacerdotes e seminaristas que me manifestam um grande desejo de se entregarem às missões e isso acende cada vez mais o meu ardor missionário; e finalmente, olhando para a realidade em que me encontro, vejo na minha diocese de Turim uma abundância de clero que nem sabemos onde o colocar na diocese, e tudo isto é uma verdadeira pena, se pensarmos que o clero diocesano pode ter uma missão mais ampla.

Digo-te uma coisa: conheço muito bem os meus padres e sei que são demasiados na minha diocese do Piemonte. Esta abundância de vocações na minha diocese toca-me profundamente o coração, sobretudo porque há muita gente hoje que não conhece ou não ouviu falar de Jesus Cristo em África, na América e noutros continentes.

Li e refleti muito bem sobre o caminho missionário do Cardeal Masaia, na Etiópia, que não pude continuar por causa da minha saúde física. Tudo isto faz parte da minha motivação para reunir os sacerdotes da minha diocese e de outras dioceses para continuar esta grande obra missionária iniciada pelo meu amigo Masaia. Entendeste?

 

Sim, José, está tudo muito claro. Mas agora pergunto: Como sacerdote diocesano, eras corresponsável pela animação e formação da Igreja Católica ao serviço do Reino de Deus.

Digo-te, Lisandro, que fui movido por uma compaixão interior pelo povo africano, especialmente os etíopes, e pelos pobres de todo o mundo que não conheciam Jesus Cristo e viviam em baixos níveis de humanidade (desumanamente) por diferentes razões. Sim, a minha ação estava bem enraizada na Paróquia-Santuário da Consolata e na Igreja local de Turim, a minha visão e preocupação foi sempre o mundo, a humanidade, a começar pelos mais pobres e mais afastados da verdadeira Consolação, Jesus Cristo. Por isso aceitei o carisma (dom) do Fundador ao qual dei o melhor das minhas energias físicas (embora frágeis), intelectuais e espirituais, tudo pelos Missionários e Missionárias da Consolata. Para eles sou Pai e formador de Missionários e Missionárias para que, saindo pelo mundo, para além das suas fronteiras, anunciem a Glória de Deus às Nações, apresentando e testemunhando o Evangelho e tornando-o credível através do cuidado e da promoção da vida em todas as suas dimensões.

 

José, obrigado pelo teu tempo. Foi uma experiência muito enriquecedora e que me motivou muito na minha vocação sacerdotal missionária. Que todos os que se aproximam de ti estejam cheios do mesmo espírito e da mesma paixão pela Igreja, pela sua vocação nela e pelo ser missionário como fruto do chamamento cristão.

Que a experiência partilhada do vosso sacerdócio missionário ajude os nossos sacerdotes, e especialmente os diocesanos, a viver com ardor o seu sacerdócio e o seu empenho na construção de comunidades evangelizadas e evangelizadoras. E que os nossos leigos se sintam sempre unidos na oração com os seus ministros, especialmente neste ano sacerdotal, e empenhados na causa missionária. Graças a Deus pelo grande dom que tu, José, és para a Igreja e que o teu sacerdócio significa como fruto do amor pelo Reino de Deus.

 

* Padre Lisandro Rivas, Missionário da Consolata, texto escrito por ocasião do Ano Sacerdotal 2009-2010

Padre Lisandro foi, entretanto (em 2022), nomeado bispo. É atualmente Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Caracas – Venezuela.

Texto original, em espanhol, publicado no site consolataamerica.org | Tradução para português: Albino Brás imc